segunda-feira, 26 de março de 2012

Princípios cognitivos no humor


Tem circulado no Facebook uma brincadeira pedindo que as mulheres troquem seu avatar por uma foto delas sem blusa, como "campanha" contra o câncer de mama. Acabo de abrir o Facebook e me deparar com uma resposta a essa brincadeira. A resposta consiste em uma imagem forte com um texto aplaudido por muitos: a foto do busto desnudo de uma mulher que passou por uma mastectomia total em uma das mamas. O texto diz, altamente revoltado, que não se brinca com câncer, que queria ver se fosse com a mãe do "babaca" que posta isso, entre outros chavões.
É óbvio que essa resposta nervosa ignora um fator básico: o alvo da piada não é o câncer de mama, muito menos as pessoas com tal doença. A piada é uma sátira às campanhas do Facebook que pretendem mudar o mundo ao incentivar pessoas a mudarem de avatar.
Essa é uma amostra de que boa parte das piadas que causam revolta, causam por não serem entendidas. A pessoa vê um termo sendo usado numa piada e, só pelo fato do termo ser mencionado ali no meio, ela já acha que aquele é o alvo da piada. E pior, acha que aquela é de fato a opinião de quem fez a piada.
Piada não necessariamente é opinião. Ou alguém, em sã consciência, crê de fato que Rafinha Bastos disse aquilo porque faria mesmo sexo com Wanessa Carmago e o bebê dela?
Há que se saber distinguir o sentido figurado das palavras. Imagine eu me sentir ameaçada ao ouvir de você: "Se você não lavar a louça, eu te mato". Isso é uma óbvia figura de linguagem para dizer que é imprescindível que eu lave a louça. O problema é que a maioria de nós tende a reconhecer apenas essas figuras de linguagem óbvias.
A frase em sentido literal
Dizer que "comeria" o bebê é tão figurativo quanto a ameaça de morte acima. É plausível questionar duramente a graça e refinamento de uma frase como a dirigida a Wanessa. Mas para por aí. Eu mesma achei sem graça. Não pelo viés moral, mas simplesmente pela falta de real comicidade (sem trocadilhos porque a piada envolvia "comer", hein?).
É claro que qualquer pessoa tem direito de se sentir ofendida com algo. É um sentimento muito pessoal, no qual ninguém deve interferir. Assim como qualquer pessoa tem direito de se sentir vilipendiada diante de um "nunca vi mais gordo", ou um "você está me denegrindo" (termo que etimologicamente refere-se à palavra "negro". Defensores dos direitos dos negros dizem se tratar de um termo politicamente incorreto – embora não se saiba como o deixar de usá-lo melhore a vida de algum negro). Questiono apenas se não está fazendo falta um pouco de habilidade de abstração (em todos os sentidos) por parte de tal ofendido.
Claro que proporcionalmente é mais grave que alguém diga que transaria com seu bebê (e mais normal que alguém se ofenda). Mas isso se esquecermos que a frase foi dita por um humorista (engraçado ou sem graça), em um programa de humor (idem) e tomarmos a frase em seu sentido literal. Também é muito grave dizer, como no exemplo dado acima, que vai matar alguém – se isso for dito com a real intenção de fazê-lo.
O conteúdo escatológico
O humor é também uma ficção. Com ele, constantemente rimos e fazemos piada com coisas gravíssimas. Normalmente, piadas tem, por sua própria natureza, algum nível de crueldade (geralmente fictícia, ainda que retrate uma realidade) com um alvo (fictício ou real). Mesmo as mais "inocentes".
Há aquela piada em que um leão foge da jaula em pleno circo lotado. Ao ver a fera solta, a multidão corre em polvorosa. Uma sensível e altruísta senhora, ao perceber o desespero de um deficiente físico para fugir, grita solidária para que alguém o socorra: "Pega o deficiente! Pega o deficiente!". E o deficiente responde indignado: "Oxe! Deixa o leão pegar quem ele quiser!". (Nessa piada, em lugar de "deficiente", figura um termo tido como politicamente incorreto: "aleijado").
Há também aquela em que estão reunidos um francês, um português e um brasileiro. A cada um é perguntado qual a maior causa de morte em seus respectivos países. O francês responde: "A gripe", e escarra uma grande quantidade de muco sobre a mesa. O português responde: "A lepra", arranca um pedaço de dedo pútrido de sua mão doente e o põe sobre a mesa. Quando chega a vez do brasileiro, este responde: "A fome", atira-se sobre a mesa, pega o pedaço do dedo do leproso, passa-o no escarro e come.
Por que tantos acham engraçada uma piada envolvendo um deficiente físico e em situação tão angustiante? Sem dúvida, ninguém normal acharia graça ao ver um ser humano, na vida real, desesperado pelo risco aterrorizante de ser estraçalhado por uma fera selvagem – ainda mais sendo alguém com menor possibilidade de defesa.
Sobre a segunda piada, por que não se vê tantas reclamações contra uma anedota com algo tão hediondo e revoltante quanto a fome – que mata milhares de pessoas por dia no mundo inteiro? É mais fácil ver pessoas reclamando de nojinho do conteúdo escatológico dessa piada do que do fato de ela usar algo tão sério e deprimente como objeto de humor.
Inusuabilidade do tema
Sem falar em piada com cego, doente mental, idoso, viúva, alcoólatra, morte de sogra, infidelidade conjugal, matrimônio esfacelado (na vida real, entra-se em depressão, mata-se e morre por isso). Exemplos inesgotáveis que podem ser extraídos de quase qualquer piada que ouvimos e contamos corriqueiramente. Mas, por que são incomuns manifestações contra piadas que fazem graça com coisas que no dia a dia são tristes ou com classes de pessoas que, segundo todos acham (inclusive os que acham graça), merecem respeito?
Não há o que discutir quanto ao fato de não vermos tanta resistência a piadas com esses elementos, embora, sem dúvida, sejam eles causa de grande sofrimento na vida real. Meu palpite sobre o porquê disso é que tais coisas fazem muito mais parte do nosso cotidiano. Todos as vemos há muito tempo, praticamente em cada esquina. Então, nesses casos, a humanidade já teve tempo para conseguir distinguir linguagem figurada de uma apologia ou de uma tentativa de depreciação real.
Assim, o grande problema do chiste de Rafinha Bastos (além da patente falta de graça) foi a inusuabilidade do tema – ao menos em relação a tantos outros temas tristes, cruéis e sórdidos, porém (incoerentemente) bem aceitos quando abordados em piadas.
Achar que aquelas piadas são apologia a pedofilia ou estupro é que é uma piada. As constantes piadas na internet sobre a longevidade de Oscar Niemayer não são uma apologia à morte de idosos ou a algum desejo mórbido pelo óbito do arquiteto centenário. As piadas de Seu Saraiva, interpretado pelo falecido Francisco Milani, não eram apologia a destratar os outros na vida real sempre que estes fizerem alguma pergunta tola.
Engraçadas ou sem graça, são piadas
Numa piada veiculada no Twitter, alguém reclamou: "Querem punir @rafinhabastos por uma piada de mau gosto, mas não vi ninguém querendo punir Wanessa por cantar". É óbvio que apesar de não apreciar o trabalho dela, ninguém que desfruta de uma democracia e que seja dono de seu juízo anseia mesmo que ela seja, de fato, literalmente, punida por cantar.
As constantes piadas dizendo que Justin Bieber ou os componentes do Restart devem morrer, não são apologia ao homicídio. E, afora a reação de algumas fãs púberes e histéricas "xingando muito no twitter", nenhum adulto mentalmente são pensa em acionar a justiça por causa de tais piadas nada elogiosas. Por quê? Porque são apenas isso: pi-a-das. Engraçadas ou sem graça, refinadas ou grosseiras, cerebrais ou adolescentes, são piadas.
Ano passado, vi esse fluxograma (desconheço a autoria). Apesar de humorístico, ajuda a ilustrar como lidar saudavelmente até com a piada mais ácida.














Leia também da mesma série
Imbróglio humorístico