Sei que a história está bem velha, mas em homenagem à interessante entrevista de ontem no programa De Frente com Gabi e aos processos que ainda rolam, bem como às pessoas que vez por outra me indagam ou me provocam sobre o assunto, publico agora uma série de textos que escrevi no auge da famigerada polêmica envolvendo uma piada infame do humorista Rafinha Bastos e a cantora Wanessa Camargo. Na época, mandei os textos a pouquíssimos amigos. Um desses amigos os enviou ao Observatório da Imprensa, que publicou o segundo artigo desta série de quatro partes, mas todo o restante é inédito.
Trago isso a público após tanto tempo porque mesmo após ter lido e ouvido muita coisa (mesmo) sobre o episódio, sou pretensiosa a ponto de crer que algumas coisas ainda deixaram de ser ditas e refletidas.
Idiota, mas gato. Vale pôr uma foto |
Uma análise do caso Rafinha
Bastos
Desde
o último dia 19/11, durante a apresentação do humorístico CQC da Rede Bandeirantes, o comediante Rafinha Bastos protagoniza
mais uma polêmica para a sua extensa coleção particular. Marcelo Tas, seu
colega de bancada na atração, elogia a beleza da cantora Wanessa Camargo,
grávida de 8 meses. Rafinha concorda improvisando uma tirada: "Eu comeria
ela e o bebê". Foi o suficiente para escandalizar tuiteiros, colunistas,
anônimos, famosos e até mesmo colegas de profissão e de trabalho do humorista. Foi
o suficiente ainda para lhe render uma suspensão do programa, por tempo
indeterminado.
O caso
(res)suscita questões como liberdade de expressão e limites no humor. Questões
as quais tem seguidas vezes exposto a imagem de Rafinha Bastos a vaias
histéricas e aplausos – grande parte deles, de pubescentes embasbacados diante
do ídolo irreverente.
Mau gosto
Como bem observou acerca
do episódio a roteirista, colunista e apresentadora
Rosana Hermann: "'Gosto não se discute' é um adágio que só vale quando não
há uma instância de poder envolvida. Porque se o dono, o patrão, o patrocinador
[...] alguém com poder estiver envolvido, a coisa muda. Aí o gosto é discutido
e coibido, se necessário".
Gostar ou não gostar de determinada piada,
como já diz o enunciado, é questão de gosto. Muitos retrucarão não ser mera
questão de gosto quando se humilha, deprecia, ofende alguém. Contudo, cabem
aqui alguns questionamentos. Dentre eles: como Wanessa Camargo foi realmente
humilhada, depreciada ou ofendida com a frase pueril de Rafinha Bastos? Ele a
xingou de quê, por exemplo? Ao contrário, elogiou-a.
a sedução em um olhar |
Tal como as gracinhas soltadas pelos
pedreiros ao transeunte rabo-de-saia mais próximo, que aquele foi um elogio de
extremo mau gosto, ninguém discorda. Mas quantas pessoas acham que esses
pedreiros indecorosos devem, em nome de tudo o que há de mais justo e sagrado
no mundo, ser afastados da obra?
Como qualquer pessoa de bem, considero
Rafinha Bastos um idiota. Aliás, foi justamente esse tipo de humor que o
consagrou. Mas e daí? Ser idiota é crime? Se for, ai de mim! E, bem... ele ao
menos ganha dinheiro sendo idiota, diferentemente dos que o são de graça.
Alguns dirão que uma coisa é falar num
canteiro de obras, outra é falar na TV. Sem dúvida. Na TV, algo que logo seria relegado
ao esquecimento se ocorrido em outro meio, facilmente vira alimento por semanas
a uma mídia sensacionalista e carente de pauta.
Desperdício de energia
"O amplo alcance da TV exige maior
responsabilidade acerca do que se diz". Exato. Mas, e se pensarmos
"responsabilidade" como idoneidade, averiguação da informação antes
de criticá-la ou repassá-la, denunciar aquilo que realmente prejudica pessoas...?
Quantos, por exemplo, falam da irresponsabilidade de Rafinha, mas criticarão
minhas palavras, com base na irresponsabilidade do "não li e não
gostei", num comportamento que beira a hipocrisia?
Choca, ofende e indigna uma escola pública da
periferia da minha cidade. O professor de Matemática recebe normalmente seu
salário, mas mora em outro estado e aparece na escola só de passagem; enquanto
os alunos precisam ingressar na universidade, não estar na rua praticando
crimes, ser alguém na vida. Muitos funcionários da instituição acham esse e
outros absurdos por lá normais, ou ficam com aquela indignaçãozinha de fachada,
efêmera, comodista e safada, somente para passar ares de inconformidade. Enquanto
isso, essas mesmas pessoas acham o cúmulo uma piada. Parece que a preocupação
com o que não afeta verdadeiramente a vida de ninguém pode causar uma espécie
de torpor em relação ao que de fato importa.
Não que uma coisa, necessariamente, anule a
outra, mas geralmente é uma questão de foco. Quando focamos no problema que de
fato importa é inegavelmente mais fácil ter mais energia para combatê-lo.
Assim, sou adepta da parcimônia de energia, a fim de utilizá-la em coisas realmente
úteis.
É justificável que nos ofendamos com
injustiças ou com palavras ferinas de quem realmente significa algo para nós;
não com imbecilidades de um idiota que nada nos importa e cujas palavras não
tornam a vida de ninguém nem pior nem melhor.
Mas um dos problemas do brasileiro é justamente o desperdício de indignação com
coisas secundárias. Quão bom seria se armazenássemos toda essa indignação para,
por exemplo, os inúmeros casos de corrupção que assolam este país! Como afirmou
certa vez o jornalista Antero Greco, é "impressionante como as pessoas se
irritam com brincadeiras e são passivas com coisas sérias".
"Queria ver se fosse com você" e a incapacidade
de rir de si mesmo
Ele já
causou polêmica ao falar dos habitantes de um estado brasileiro: "Eu acho
todo mundo bonito. Isso é efeito colateral de uma temporada de shows que eu fiz
em Rondônia". Ao fazer piada no Dia das Mães: "Ae, órfãos. Dia triste
hoje, hein?". Ao fazer piada envolvendo a suposta feiúra de vítimas de
estupro: "Toda mulher que eu vejo reclamando
que foi estuprada é feia pra c... Tá reclamando de quê? Deveria dar graças a
Deus. Isso pra você não foi um crime, foi uma oportunidade. O homem que fez
isso não merece cadeia, merece um abraço". Dessa vez, seu humor
caracteristicamente grosseiro mexeu com uma famosa cantora, esposa de um
influente empresário.
Claro que há muitos babacas defendendo o
babaca comediante, mas que se a piada fosse com eles, a coisa ficaria feia (e
claro que isso é pior do que indignar-se profundamente com coisas imbecis vindas
de quem já se espera coisas imbecis). Contudo, isso não se aplica a todos para
ser um argumento universalmente válido, como alguns parecem querer utilizar.
Sou nordestina (e, pior, paraibana), região
constantemente alvo de piadas – inclusive acerca do desprovimento de beleza de
sua população –, nem por isso me ofendo com piada sobre o meu estado, ou
qualquer um deles (pouco mais que pedaços de terra geopoliticamente
delimitados). Sou órfã de mãe, nem por isso me ofendi com a piada do Dia das
Mães. Sofri abuso sexual, nem por isso me ofendi com a piada acerca da feiúra
de mulheres sexualmente abusadas.
Sou a primeira a rir de mim mesma. A vida
fica bem mais graciosa assim. Se um dia tiver filhos, essa será uma das lições
mais importantes que pretendo, de modo gradual, ensinar a eles (bem como a canalizar
sua inconformidade para as reais injustiças do mundo).
Rir de si mesmo, aliás, é uma característica
que não falta a essa nova geração de humoristas polêmicos, como Rafinha Bastos
e seu colega Danilo Gentili. Este último, por exemplo, que também já
protagonizou polêmicas semelhantes, iniciava
seu show falando mal de sua própria mãe, bem como se autoavacalhando. Não que o
simples fato de rir de si mesmo confira poderes ilimitados para dizer o que bem
quiser sobre os outros, mas anula o argumento fraco do "queria ver se
fosse com você".
E o "queria ver se fosse com seu
filho"? Há outras maneiras de se lidar com isso. Pegando novamente o texto
de Rosana Hermann, que considero o mais honesto, sóbrio e inteligente acerca da
celeuma Rafinha Bastos que tive a oportunidade de ler:
Rafinha Bastos, pessoalmente, é uma moça. Um
doce de pessoa. Gentil, engraçado. Comigo sempre foi. E, veja bem, eu já fiquei
muito chateada com ele porque há anos, quando minha filha era criança e ela
apareceu num vídeo com meu marido, ele falou mal daquela 'criança' que
aparecia. Fiquei chateada, mas entendi. Ele é humorista e faz isso, gera risos
a partir da pior interpretação de tudo e de todos. Era a minha filha. Mas, pro
humorista, uma criança genérica. Como mãe de juiz. [...] Se eu fosse a Wanessa,
o Buaiz, a família, eu também teria ficado chateada com a colocação sobre o
bebê. Como fiquei quando ele falou da minha filha. Mas, ficar chateado é uma
coisa que dá e passa. Hipocrisia é algo que vem e fica. Escondido.
"A dignidade de Wanessa Camargo foi
ofendida ao ser ofendido o bebê dela". Mas qual foi exatamente a ofensa ao
bebê? Se Rafinha Bastos fosse mesmo um maníaco violador de fetos indefesos,
isso seria uma auto-ofensa. Seria feio para ele, não para o bebê. Enquanto
isso, o bebê está lá, muito melhor que nós, calmamente flutuando em líquido
amniótico.
O que é humor?
Muitos disseram que a tal frase não é humor.
Curiosamente, não vi ninguém se preocupando em explicar o que é humor e porque
aquela frase não se encaixa nessa categoria.
Segundo o linguista Sírio Possenti (apesar de,
por algum motivo não explicitado, ele também dizer que não foi humor), uma
característica do texto humorístico é que ele conta duas histórias: uma óbvia e
outra inesperada. Aplicando esse conceito ao episódio, temos também a história
óbvia (a parte do sexo com Wanessa Camargo – isso não é inusitado, afinal, ambos
são adultos e a beleza da moça é notória) e a história inesperada (a parte
figurada e fictícia de dizer que transaria até mesmo com o bebê dela, de tão
bonita que ela está). O que confere um desfecho inusitado, exagerado, grosseiro
e surreal à piada.
A frase pode não agradar nossos ouvidos, mas
se encaixa na definição de humor. É como dizer que funk não é música. Concordo
com essa afirmação – e a repito –, pois abomino tal estupro auditivo com todas
as fibras do meu ser. Mas não posso concordar tecnicamente com ela, nem
repeti-la por esse viés. Tecnicamente, música é tudo o que apresenta ritmo,
melodia e harmonia. Posso dizer que o funk apresenta esses três elementos de
maneira pavorosa, mas não significa que esses elementos essenciais a uma música
não estejam lá.
Dizer que algo não é humor porque não me faz
rir, também é arbitrário. Não rio de muita piada por aí, mas o gosto de uma
pessoa não é capaz de determinar a categoria de algo. É grande a quantidade de pessoas
que prefere ser empalada a ouvir um funk, isso não faz com que o funk deixe de
ser música. Em qualquer lugar do mundo em que você tocar um funk, as pessoas
racionais reconhecerão aquilo como o som de algo chamado música, mesmo que a sonoridade lhes cause
vontade de amassar os próprios tímpanos em um pilão.
catota do capeta |
Afirmar que algo não é comida só porque não
gosto desse algo ou o considero um alimento insubstancial, pode ser uma boa
resposta retórica, humorada ou opiniosa, mas não faz com que algo deixe de ser
comestível. Digo sempre que uva-passa não é comida. Mas sei que é
(infelizmente). Agora, imagine que eu, por considerar a adição de uva-passa ao alimento de seres humanos algo de mau gosto (em todos os sentidos), diga que
pessoas que comem uva-passa se enquadram na mesma categoria das que comem
cabelo (que realmente não é um hábito humano, tanto que é uma patologia
catalogada, chamada tricotilomania). Posso até dizer isso, brincando,
exagerando, e só. (Pior é que tem gente que considera da mesma maneira quem diz
uma frase brincando e quem realmente pratica estupro e pedofilia).
Afirmar que a frase de Rafinha Bastos não é
humor (e que por isso ele deve ser punido como se houvesse dito aquela bobagem
de modo sério) é uma afirmação sem amparo técnico, baseada no exagero ou na
emoção. E é problemático quando julgamos duramente alguém com base nesse tipo
de critério.
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